Quinta-feira, 1 de Janeiro de 2009

My Blueberry Nights

 

 

Os dias somavam-se, indolentemente, o turbilhão calmo do vazio, dos clamores, da febre, das lágrimas, da desilusão, concentrava-se na solução diluída do espírito, sujeito ao intrespassável dique entre a memória e o quotidiano.

 

Suportando as horas como hordas ferinas procurando derrotar as muralhas da solidão, Röbi, enfrentava o pendão do tempo, mutilado, forçando-se a resistir, a estancar a gangrena de um tumulto emocional desmesuradamente insustentável; exilado na árida mansidão a que se votara, resguardara todos os pertences, todas as iconografias que infalivelmente actuariam como veículo para a imagem do passado que amordaçava; o quarto, menos exíguo, encontrava-se repleto de um vácuo ainda verde, não ainda arejado como um espaço por preencher, mas antes, mirrado como um fruto devorado pela voracidade da melancolia; todos os bens abandonados num recanto invisível da divisão, objectos maiores, irredutíveis, cobertos por panejamentos empoeirados, temíveis fantasmagorias que antes foram resplandecente mobília de mogno e faia.

 

A lassidão das suas meditações pousava descuidadamente nas gotículas de chuva, aderidas em desgoverno à vidraça do postigo. Divagantes corpúsculos vivos, animados pelo fustigar gravítico, jogavam-se diligentemente no abismo marmóreo do parapeito; tais dardos hidráulicos, invocavam no seu humor volúvel uma agonia latente, aeronautas temerários como ele um dia fora, ávidos aventureiros sem provisão de fôlego para um regresso à tona.

 

 Desejava percorrer-se, fraccionar-se no cardume aquático da janela, banhar-se nessa purgação inverosímil até não mais restar reduto do seu passado que pudesse gotejar insubordinadamente. Exaurido como se encontrava, conhecia sobreaviso quão nefastos eram os desgostos que ousava deixar enlearem-se-lhe, sabia de antemão até, o desfecho de tais permissões: o total descontrolo do espírito.

 

Muito embora o refúgio da nostalgia e dos clichés passionais o amainassem, sabia, no âmago do seu ser, que consistiam unicamente em paliativos, ladainhas, estribilhos entoados para adormecer o fervor da perda, da ausência. Reportando-se ao núcleo efervescente e agitado da alma, que se revolvia como o mar indómito, amava sobretudo a serenidade com que ela sossegava essa fera irascível, não a domando, tão pouco domesticando-a, antes, seduzindo-a, como a esfinge hirsuta, rogada aos encantos da mestria feminina.

 

 


Discover Cat Power!
música: My Blueberry Nights - Cat Power - The Greatest
publicado por sofisma às 20:20
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Sexta-feira, 17 de Outubro de 2008

Il y avait un jardin

 

 

Desvendei hoje uma nova realidade. Interiorizei - e não emprego o termo de forma inócua - a maçã de Michaux1 a um nível sublime. A sumptuosidade do acordar de um jardim. A forma como se espreguiça, se contorce. Chora as lágrimas mais pueris, mais cândidas, idênticas à que uma criança derrama para entumecer alguma vista atacada. Não preciso de me encolher ou aumentar: Sou do tamanho daquilo que vejo e não do tamanho da minha altura.2

 

*

 

Il y avait un jardin - George Moustaki

 

{Parlé}C'est une chanson pour les enfants
Qui naissent et qui vivent entre l'acier
Et le bitume entre le béton et l'asphalte
Et qui ne sauront peut-être jamais
Que la terre était un jardin

Il y avait un jardin qu'on appelait la terre
Il brillait au soleil comme un fruit défendu
Non ce n'était pas le paradis ni l'enfer
Ni rien de déjà vu ou déjà entendu
Il y avait un jardin une maison des arbres
Avec un lit de mousse pour y faire l'amour
Et un petit ruisseau roulant sans une vague
Venait le rafraîchir et poursuivait son cours.
Il y avait un jardin grand comme une vallée
On pouvait s'y nourrir à toutes les saisons
Sur la terre brûlante ou sur l'herbe gelée
Et découvrir des fleurs qui n'avaient pas de nom.
Il y avait un jardin qu'on appelait la terre
Il était assez grand pour des milliers d'enfants
Il était habité jadis par nos grands-pères
Qui le tenaient eux-mêmes de leurs grands-parents.
Où est-il ce jardin où nous aurions pu naître
Où nous aurions pu vivre insouciants et nus,
Où est cette maison toutes portes ouvertes
Que je cherche encore et que je ne trouve plus.

 

 

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1 Lointain Intérieur, MICHAUX, Henri

2 Alberto Caeiro

publicado por sofisma às 11:00
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Segunda-feira, 8 de Outubro de 2007

La Monnaie de L’Absolut | A Moeda do Absoluto

reflexão | técnicas oficinais | guilherme gomes | esad

 

 

3 Parte | Histórias do Cinema II

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La Monnaie de L’Absolut | A Moeda do Absoluto

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“Then I despair... I remember that all through history, the way of truth and love has always won. There have been murderers and tyrants, and for a time they can seem invincible. But in the end they always fall. Think of it always.”

 

MALRAUX, Andre

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Não foi num acesso casual que optei por iniciar esta dissertação com uma epígrafe; designadamente, de Malraux. Bem como, não é circunstancial a consequente tónica crítica; e neste concreto caso, política; no crescendo da narrativa de Godard. Se num primeiro momento, somos confrontados com uma gramática articulativa: desencadeada e torrencial, com pouco consentimento cronológico e uma trama caótica, desordenada e balburdiosa; é nos rematada, de forma concisa e exígua, uma mensagem definida e escrupulosa – a de que o Cinema como o Mundo – depende da História.

 

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“Assassine-se um povo. Onde? Na Europa. Este facto tem testemunhas? Uma testemunha: O Mundo inteiro. Os governos vêem-no? Não! A civilização está nos povos. A barbárie está nos governos. Bastaria um gesto dos governos da Europa para o impedir.”

HUGO, Victor

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Entendo que neste episódio estrito, Godard levanta duas grandes problemáticas que, retratam não somente o panorama afecto à Arte e às correntes e manifestos líricos, mas também a toda a paisagem social, política e histórica de uma viragem sangrenta, como foi a Segunda Guerra Mundial. Em certa medida, estas duas decorrências, comprovam a ideia colmatada, desde do início da narrativa, do cinema como um barómetro do contexto próprio que o reveste; o cinema como interlocutor bifurcado: com um tanto de objectivo e vetado de pretensões ou segundos propósitos, e, um tanto de subtil e intrincado jogo de sentidos e significados; em ambos os casos, o cinema, como a moda e como a História, funciona como um aparelho ponderador dos acontecimentos. O cinema como Máquina de costumes.

 

As duas problemáticas são pois: A Morte do Cinema, com a crescente americanização e mediatização deste; o cinema como montra dos Tempos.

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“O que é o cinema? Nada. Que quer ele? Tudo. Que pode ele? Qualquer coisa.”

GODARD,Jean-Luc

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O cinema é tudo, e por devir, é também nada. Godard, numa têmpera mais pessimista e desalentada, dealba sobre o fluxo da História, que acompanha de mão dada o cinema. Mas, mais do que questionar a essência, a concepção do cinema, pergunto-me, qual o destino do cinema. Os meios Media? Um cinema de bolso? – a anunciação da morte do cinema, não me parece tão repleta de inconsistência. E creio ser esta a temática da moeda do Absoluto. Porque, o absoluto é uma potência atingível ou ascendente; mas, assim como o cinema pode ascender a um absoluto (“Que pode ele? Qualquer coisa.”), pode também, no diâmetro oposto, nada ser. Simplificando. Qual a diferença entre o cinema a cores e o cinema a preto e branco? – “O cinema a cores é mais real, mas o cinema a preto e branco é mais realista.” – Wim Wenders. Qual a diferença entre o cinema interventivo e o cinema coloquial? – simples escolhas.

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"Une pensée qui forme. Une forme qui pense"

 

GODARD,Jean-Luc

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Para terminar, gostava de expor uma ideia, ou antes, um antagonismo numa analogia da poesia à resistance.

O cinema, contrariamente à poesia, não intervém, expõe. Entende-se por resistência, não apenas um agastamento interposto ou inflectido contra um acontecimento, como uma guerra, ou qualquer ocasião que despolete um agravamento ou manifesto, mas, também, uma interposição face a uma ideologia; neste caso concreto da narrativa de Godard, a americanização, mercantilização e uniformização do cinema. Segundo ele, o cinema francês não obteve, por quaisquer óbices que desconheço, a esperada intervenção fervorosa como o cinema italiano; e por isso, sem nunca abandonar o jogo de sentido, Godard termina aludindo ao filme “Roma Città Aberta”, de Roberto Rossellini, um cineasta neo-realista italiano, ao som de uma música de Cocciante. Expressando assim, a profunda admiração para com a nova vaga (Nouvelle Vague) do cinema póstumo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Reflexão levada a cabo por Guilherme Gomes, ESAD, 2007

 

música: Ne me quitte pas-Jacques Brel
sinto-me: Cansado
publicado por sofisma às 01:13
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