Segunda-feira, 8 de Setembro de 2008

A adaga

1

 

 

 

 

A prova mais atroz que Kramer houvera jamais enfrentado fora o silêncio. O silêncio que tingia agora o refúgio exíguo, naufragado num ermo da floresta de Cremeia. Não o silêncio em se resvala ao cabo da acumulação de reclusões; nunca um silêncio degenerativo, como um velho salgueiro atolado, no solo derrubado pelo peso das suas nodosas raízes.

 

Este era um silêncio de uma natureza mais crua, imensamente mais rude e insuportável: o silêncio da sua alma.

 

A solidão nunca fora uma condição inédita para Kramer, o seu espírito ousado e insatisfeito arrecadara-lhe antigas inimizades, e a sua queda para ferozes debates e rixas sangrentas, já o haviam encaminhado para um exílio rotineiro e comum. Porém, jamais nas trinta e seis primaveras da sua atormentada existência, se sentira tão só: mudo e surdo na presença desafiadora e provocadora da Tragédia.

 

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2

 

 

 

 

O marulhar do oceano orquestra o movimento ondulado de uns dedos delicados e esguios, sobre o parapeito áspero de madeira negra. Estes dedos femininos, de uma brancura pálida quase angelical, bailam com a melodia das ondas que se despenham na falésia. A valsa paralela entre a mão, que flutua sobre as fibras negras do parapeito, e a maré que rodopia ao longe, compõem a imagem, reflectida por um espelho que se encontra sobre a cómoda.

 

- Onde pairará ele, na imensidão grotesca deste monstro de sal e água? Que ventos o aconchegam nesse outro lugar que a calçada marinha torna inacessível? - Nicoletta recosta o rosto na mão que antes acariciava a madeira, circunspecta e melancólica.

 

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3

 

 

 

 

 

- O que é feito do senhor Kunz? - indagou um sujeito distinto, de meia-idade, num tom cordial e aprazido.

 

- Oh, meu caro amigo Ruskin, faz uma temporada que não lhe ponho a vista em cima. Mas o meu amigo está familiarizado com o espírito volúvel de Kunz, que quer que lhe diga? Eclipsou-se.

 

- Isso é um facto - aquiesceu Ruskin.

 

Acrescentando ainda, agora confrangido:

 

- Por outro lado, é da natureza de um caixeiro-viajante uma ausência circunstancial e periódica, não é verdade?

 

- Inevitavelmente, sim, é da sua natureza...- retorquiu laconicamente,

 

- Bom, retomarei então a minha higiene matinal, vou caminhar pelo parque.

 

- Grato pela sua presença, Ruskin, bons ares o animem nessa caminhada - despediu-se Morris, educadamente, todavia, sem timbre e quase maquinalmente.

 

- Até breve.

 

Morris ainda ensaiou um voto de deferência para com o seu cliente, silenciando-se de seguida face ao atraso do cumprimento. Era-lhe por demais agonizante o retinir da campainha, badalando agudamente a cada recém-chegado, ecoando-lhe fundo na alma, com a reminiscência subjacente ao badalo; fora Kunz quem o instalara faziam agora seis meses.

 

Kunz era um daqueles espíritos livres que tanto admirava. Adjacente a esta característica, Morris forçava-se a invocar o episódio que firmara a sua amizade, acreditando que a peripécia reunia todas as faculdades e talentos do companheiro, evocando a imagem de um indivíduo alvo, elegante, impecavelmente trajado, mesmo nas piores adversidades das suas economias flutuantes, possuidor de uma personalidade eloquente e contagiante; desistira de alumiar as cinzas extintas da esperança do seu regresso, regozijava-se por isso em recordações soltas, como a do primeiro e derradeiro encontro entre ambos:

 

Nessa época ainda não geria o estabelecimento alfarrabista, situado no respeitável nicho geográfico de Florença, berço de cultura e conhecimento; nem tão pouco se afirmara frondosamente como auspicioso comerciante de raça judaica, gesto descuidado quando proveniente de um principiante; eram tempos desenvoltos esses, tempos anteriores às rédeas estreitas que agora crivavam as linhagens e credenciais de raça; tempos, em que um jovem romeno com descendência israelita, aspirante a livreiro retalhista, caminhava desenvoltamente pelas ruas do Possível.

 

Fora numa dessas deambulações, que o acaso inesperado o levara ao encontro de Kunz. Morris caminhava apressadamente nessa manhã sépia de Outono, a camurça desbotada e rota dos seus sapatos, era infiltrada por uma mistela de folhagem fétida e água gélida, enregelando os seus pés nus. Empunhava numa das mãos, um documento de larga escala e de gramagem densa, próprio das credenciais de propriedade ou tutela, e, na outra, um pesado livro revestido de pó e declaradamente em decomposição. Morris, voltando o pescoço para consultar o distinto relógio da praça, embate violentamente contra uma anatomia ossuda e esquiva que, apesar disso se mantém inerte ao choque. O pesado livro cai aparatosamente, desmontando-se a capa do corpo de folhas que, esvoaçam pela calçada e se tingem de lama e sujidade. Morris, escachado no chão, exalta-se:

 

- Não vê por onde anda?! Já viu o que causou?

 

- Equivoca-se, meu caro, antes de mais a conjugação acertada seria causámos, já que ambos participámos do evento.

 

- Lamento se lhe causou maior prejuízo do que à minha pessoa, mas como pode concluir, é uma mera questão de swing - acrescentou Kunz, manifestamente divertido, em tom de gracejo, gesticulando avidamente.

 

Exasperado e levantando a custo a sua constituição rotunda, Morris brama:

 

- O quê?! Ainda se atreve a proferir graçolas, seu bexigoso! Acaba de destruir uma valiosa relíquia que me arrecadaria um bom negócio!

 

- Uma vez mais, uma questão de óptica, perspectivada por si. O dano que acaba de lamentar foi na verdade um feliz acaso - atalhou Kunz, ainda no seu tom coloquial e reluzente.

 

- Como disse? Um feliz...

 

- Acaso, sim, indubitavelmente! - atalhou Kunz.

 

- Em que medida, já agora? - inquiriu Morris, despeitado pelo malfadado diálogo contagiante do magricela metediço.

 

- A feliz circunstância que fez colidir as nossas pessoas, aconteceu porque o senhor mirava nervosamente o relógio, a fim de chegar a horas ao leilão que acaba de terminar no Augustus; adianto-lhe mais: a razão da sua inquietação, acaba de se desfazer no chão; Sim, falo da velha edição da Odisseia de Homero, que almejava vender a troco de algo que não lhe pertence...

 

Assoberbado, Morris questiona:

 

- Mas... como diabo sabe o senhor que pretendia comprar a emblemática adaga de Alexandre o Grande?

 

- Meu caro comparsa Morris, eu sei mais do que um magricela metediço deveria saber...-respondeu Kunz, vitoriosamente, boiando-lhe um sorriso vencedor nos lábios.

 

--------

 

continua

 

7 Setembro, 2008

 

 

 

 

 

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publicado por sofisma às 21:38
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