Quarta-feira, 29 de Outubro de 2008

Viagem na Irrealidade Quotidiana

 

 

  1. VIAGEM NA HIPER-REALIDADE

 

1.1.  AS FORTALEZAS DA SOLIDÃO

 

 

“As duas raparigas, muito belas, estão nuas, agachadas uma em frente da outra. Tocam-se com sensualidade, beijam-se, lambem a ponta dos seios uma da outra. Actuam encerradas numa espécie de cilindro de plástico transparente. Mesmo quem não seja voyeur de profissão é tentado a circum-navegar o cilindro, de modo a vê-las também de costas, e de três quartos, e do lado oposto. Depois é-se tentado a aproximar-se do cilindro, que está sobre uma colunazinha e tem poucos decímetros de diâmetro, e a olhar de cima: as raparigas já lá não estão. Tratava-se de uma das muitas realizações expostas em Nova Iorque pela escola de Holografia.

 

(…)

 

A holografia não é uma brincadeira: é estudada e aplicada pela NASA para as explorações espaciais, é utilizada em medicina para obter representações realistas das alterações anatómicas, serve a cartografia aérea, muitas indústrias para estudar processos físicos… Mas começa a ser usada por artistas que em tempos talvez tivessem feito hiper-realismo, e o hiper-realismo satisfaz as ambições mais ambiciosas. Em São Francisco, à porta do Museu da Feitiçaria, está exposto o maior holograma jamais realizado, onde se vê o Diabo com uma belíssima feiticeira.

A holografia não podia prosperar senão na América, um país obcecado pelo realismo, onde para que uma reevocação seja crível, deve ser absolutamente icónica, cópia fiel, ilusionisticamente «verdadeira», da realidade representada.

Os europeus cultos e os americanos europeizados pensam nos Estados Unidos como na pátria dos arranha-céus de vidro e aço e do expressionismo abstracto. Mas os Estados Unidos são também a pátria do Super-Homem, o sobre-humano herói de uma série de quadradinhos que dura desde 1938. O Super-Homem de vez em quando sente necessidade de se retirar com as suas recordações, e voa através de montanhas inacessíveis onde, no coração da rocha, defendida por uma enorme porta de aço, fica a Fortaleza da Solidão.

Aqui, o Super-Homem guarda os seus robots, cópias fidelíssimas de si próprio, milagres da tecnologia electrónica, que aos poucos envia pelo mundo para realizar um justo desejo de ubiquidade. E os robots são incríveis, porque a sua aparência de verdade é absoluta, não são um homem mecânico todo rodinhas e «bip-bip», mas uma «cópia» perfeita do ser humano, pele, voz, movimentos e capacidade de decisão.

O Super-Homem usa a fortaleza também como museu de recordações: tudo aquilo que sucedeu na sua vida aventurosíssima está aqui registado em cópias perfeitas ou, inclusivamente, conservado como peça original miniaturizada, como a cidade de Kandor, supérstite da ruína do planeta Kripton, que ele continua a fazer viver, em dimensões reduzidas, sob uma redoma de vidro formato salão da Avó Esperança, edifícios, auto-estradas, homens e mulheres. A pertinácia com que o Super-Homem conserva todas as relíquias do seu passado faz pensar naqueles quartos maravilhas, ou wunderkammer, difundidos na civilização barroca alemã, que tiveram início com os tesouros dos senhores medievais e talvez ainda antes, com as colecções romanas e helenísticas. Nas colecções antigas alinhava-se o corno de unicórnio com uma cópia de estátua grega, e mais tarde presépios mecânicos e autómatos mirabolantes, galos de metal precioso que cantavam, relógios com a parada dos homenzinhos que saíam ao meio-dia, e assim sucessivamente. Mas, no início, a minuciosidade do Super-Homem parecia incrível, porque, pensava-se, nos nossos tempos a wunderkammer já não encanta ninguém: e não se tinham ainda difundido aquelas práticas de arte pós-informal, como os assemblages de caixas de relógio encaixadas por Arman dentro de uma vitrina ou os fragmentos de quotidiano (uma mesa ainda posta depois de uma refeição desordenada, uma cama desfeita) de Spoerri; ou ainda os exercícios pós-conceptuais, como as colecções de Annette Messager, que acumula em cadernos nevroticamente cadastrais as recordações da sua infância e as expõe como obra de arte.

A coisa mais incrível era que o Super-Homem, para recordar os eventos passados, os reproduzisse sob a forma de estátuas de cera de tamanho natural, coisa de Museu Grévin, um tanto macabra. Naturalmente, não se tinham ainda visto as estátuas dos hiper-realistas, mas estava-se disposto a pensar, mesmo depois, que os hiper-realistas eram vanguardistas bizarros que surgiam como reacção à civilização da abstracção ou da deformação pop. Assim, parecia ao leitor do Super-Homem que as suas estranhezas museográficas não tinham uma correspondência real com o gosto e a mentalidade americana.

E, no entanto, na América há muitas Fortalezas da Solidão, com as suas estátuas de cera, os seus autómatos, as suas colecções de maravilhas inessenciais. É preciso apenas ultrapassar os limites do Museu de Arte Moderna e das galerias de arte e entrar noutro universo, reservado à família média, ao turista, ao homem político.”

 

 

 

 

 

in ECO, Umberto, Viagem Na Irrealidade Quotidiana, Difel, 1986, Lisboa

 

publicado por sofisma às 21:45
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Sexta-feira, 17 de Outubro de 2008

Il y avait un jardin

 

 

Desvendei hoje uma nova realidade. Interiorizei - e não emprego o termo de forma inócua - a maçã de Michaux1 a um nível sublime. A sumptuosidade do acordar de um jardim. A forma como se espreguiça, se contorce. Chora as lágrimas mais pueris, mais cândidas, idênticas à que uma criança derrama para entumecer alguma vista atacada. Não preciso de me encolher ou aumentar: Sou do tamanho daquilo que vejo e não do tamanho da minha altura.2

 

*

 

Il y avait un jardin - George Moustaki

 

{Parlé}C'est une chanson pour les enfants
Qui naissent et qui vivent entre l'acier
Et le bitume entre le béton et l'asphalte
Et qui ne sauront peut-être jamais
Que la terre était un jardin

Il y avait un jardin qu'on appelait la terre
Il brillait au soleil comme un fruit défendu
Non ce n'était pas le paradis ni l'enfer
Ni rien de déjà vu ou déjà entendu
Il y avait un jardin une maison des arbres
Avec un lit de mousse pour y faire l'amour
Et un petit ruisseau roulant sans une vague
Venait le rafraîchir et poursuivait son cours.
Il y avait un jardin grand comme une vallée
On pouvait s'y nourrir à toutes les saisons
Sur la terre brûlante ou sur l'herbe gelée
Et découvrir des fleurs qui n'avaient pas de nom.
Il y avait un jardin qu'on appelait la terre
Il était assez grand pour des milliers d'enfants
Il était habité jadis par nos grands-pères
Qui le tenaient eux-mêmes de leurs grands-parents.
Où est-il ce jardin où nous aurions pu naître
Où nous aurions pu vivre insouciants et nus,
Où est cette maison toutes portes ouvertes
Que je cherche encore et que je ne trouve plus.

 

 

-------------------------

1 Lointain Intérieur, MICHAUX, Henri

2 Alberto Caeiro

publicado por sofisma às 11:00
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Terça-feira, 14 de Outubro de 2008

Velhos

Imensas criaturas terrestres,

Fermento, temperado na fornalha lôngeva

De uma existência.

 

Velhos, nos aposentos geriátricos

Dos jardins.

 

Sentados sobre o

Peso atávico da sua antiguidade,

Suportam a punição de Atlas.

 

Meneiam o tronco,

Nodosos salgueiros,

Em gesto de vómito,

De indisposta melancolia.

 

Oprime-lhes o despotismo

De um mundo,

No palco onde singraram

Actuações e animosidades

Infinitas — seus rostos rotos

Engelhadas rugosidades,

Fileiras do inesquivável

Abate da vida.

 

Choram como riem,

A desistência é um mote

Bifurcado:

Sustenta-os e embota-os;

Estátuas. Restam-lhes os fragmentos

Que resvalam,

Fuligem fétida,

Folhas caducas de Outono:

O último reduto de resistência.

 

Velhos, sois velhos,

Como a terra revolvida,

O terreno cauterizado,

A túmida placenta,

Onde um dia vingará

Uma nova colheita.

 

Guilherme Gomes

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publicado por sofisma às 09:35
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Segunda-feira, 13 de Outubro de 2008

A Morte da Arte

 

 

Não é inédita na estética da esfera criativa, a imagem do objecto artístico como filho do criador. As considerações e correspondências encontram aqui, uma inesgotável fonte semiótica a ser explorada — centremo-nos no entanto, na análise directa da expressão[1] como parto e porvir do desencadeador.

 

O filho, a criança que brota e desabrocha do sujeito, assume diversas representações; sejam elas personificações, edificações ou insígnias caracterizadoras de uma origem, herdam uma genética, de cariz parental, um vestígio mas igualmente uma metamorfose.

 

Esta nova fisionomia, aquilo que a obra de arte contém de novo, de inovador, assombra o artista[2]: é que este — como o progenitor — manifesta tendencialmente alguma resistência no divórcio com o objecto amamentado. Porquê?

 

Porque este encabeça uma missiva, que ele teme que se dissimule na autonomia sofisticada da criança nutrida.

 

Porque deseja proteger — na acepção mais filantropa e romântica — a obra que divagará, diletante, nas imponderáveis águas da aceitação.

 

Ou porque, tão-somente, o objecto, como interlocutor, mediador, como estandarte da cruzada do artista, intrínseca à procura pelo cerne místico[3]: é uma criatura mortal.

 

Aferroamos este engodo à arte: a pretensão de imortalidade.

 

À arte está indigitada a condenação natural da sua Morte: tornar-se o terreno fértil onde prosperará a geração póstuma.

 

*

 

“Há um objecto e esse objecto é descoberto pela arte.”[4]

 

“Há um objecto e esse objecto descobre para nós a arte.”[5]

 

 

 

 

 

 

 


[1] Cunho e feição particular do criador.

[2] Terminologia desposada de qualquer conotação, artista como indivíduo que, partindo de um determinado engenho ou qualidade, exerce uma prática que se poderá consignar ao âmbito artístico.

[3] in BAUDELAIRE, Charles, As Flores do Mal, Sta. Maria da Feira, Relógio D’ Água, 2003, p. 285

[4] in Baudelaire y el artista de la vida moderna, Pamplona-Iruna, Editorial Pamiela, 1991, p. 135

[5]Ibid

 

publicado por sofisma às 22:26
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Sábado, 11 de Outubro de 2008

O Albatroz

                                       

                                             II

                                O ALBATROZ

 

Por mera brincadeira, os homens de equipagem

Caçam enormes aves do mar, albatrozes

Que, indolentes, costumam seguir a viagem

Do navio percorrendo abismos tenebrosos.

 

Assim que sobre aquelas tábuas são largados

Os reis do céu azul, envergonhados, trôpegos,

Deixam cair, humildes, as imensas asas,

Que arrastam pelo chão, como remos já soltos.

 

Como está mole e frouxo o alado peregrino!

Ele, que tão belo foi, ei-lo cómico e feio!

Um espicaça-lhe o bico, usando o seu cachimbo,

E um outro, coxeando, imita o pobre enfermo!

 

O poeta é igual ao príncipe das nuvens

Que se ri do arqueiro e afronta a tempestade;

Exilado na terra e no meio dos apupos,

As asas de gigante impedem-no de andar.

 

in, "As Flores do Mal", BAUDELAIRE, Charles, Assírio e Alvim

publicado por sofisma às 16:20
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