"Pois não é assim tanto o mal, o proscrito(segundo o consenso social), o proibido, o vergonhoso, o indecente que é ocultado, é pelo contrário (ou mais ainda) o bem, o ideal de bem que, como tal, obliterado, se esconde, é escondido aos outros, nesta época em que velado e suspeito, seria julgado hipócrita, falso, não sincero, tolo, caduco ou insignificante. Mas não deve sê-lo em absoluto"
in UMA VIA PARA A INSUBORDINAÇÃO, MICHAUX, Henri, Livros etc, 2008
O voto de credibilidade é um raro gesto quando dirigido ao próprio. Não se trata de modéstia ou carência dela. A porção de comedimento ou petulância têm apenas que ver com fragmentos, efígies, máscaras que agregamos à alma; - que para nós próprios representa um mistério por desvelar - instâncias e estações de um tempo que aflore ou se atrofia dentro do espírito.
Eu acredito em mim - poderoso bálsamo, refulgente adágio mas, peremptoriamente falso. Pior. Pretensioso.
De facto, o repertório e historial cronológico de conquistas, venturas e desventuras que constituem o périplo da nossa jornada, compõem - enfim - convergem na cristalização opaca da crença. Mas tal religião é efémera e susceptível de ser quebrada e dissuadida.
Eu creio em mim, conquanto alguém credibilize que tal não é descabido ou oco, como um pão cujo miolo é inexistente persistindo apenas a côdea.
Mas a validade e legítima credulidade, patenteada pelo apelo revogativo ou advogativo que perfazemos de nós, desfaz-se, cai como um castelo de cartas ao menor sopro de insuportável indiferença.
"Conta-se que há uma raça de cavalos que, quando perseguidos, abrem por instinto a si próprios uma veia com os dentes, para poderem respirar mais livremente.
Era também isso que eu queria: romper uma veia para alcançar a liberdade eterna!"
in WERTHER, GOETHE, J.W, Bárbara Palla e Carmo, 2000
A vida é um milagre. A vida perde o rastro do milagre. A vida encara, após reflexão, o milagre que a gerou e fez brotar da matéria, como mineral em bruto. Entrevê-o, extraído das entranhas do ventre geológico, reputado como matéria por esculpir. A grafite que floresce diamante. A vida acha-se num carrossel obstinado, a quimera do idílio – o diamante. A grafite consigna a Tragédia do Homem – desejar a quintessência, usurpando o valor da origem da equação – a grafite.
1
A prova mais atroz que Kramer houvera jamais enfrentado fora o silêncio. O silêncio que tingia agora o refúgio exíguo, naufragado num ermo da floresta de Cremeia. Não o silêncio em se resvala ao cabo da acumulação de reclusões; nunca um silêncio degenerativo, como um velho salgueiro atolado, no solo derrubado pelo peso das suas nodosas raízes.
Este era um silêncio de uma natureza mais crua, imensamente mais rude e insuportável: o silêncio da sua alma.
A solidão nunca fora uma condição inédita para Kramer, o seu espírito ousado e insatisfeito arrecadara-lhe antigas inimizades, e a sua queda para ferozes debates e rixas sangrentas, já o haviam encaminhado para um exílio rotineiro e comum. Porém, jamais nas trinta e seis primaveras da sua atormentada existência, se sentira tão só: mudo e surdo na presença desafiadora e provocadora da Tragédia.
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2
O marulhar do oceano orquestra o movimento ondulado de uns dedos delicados e esguios, sobre o parapeito áspero de madeira negra. Estes dedos femininos, de uma brancura pálida quase angelical, bailam com a melodia das ondas que se despenham na falésia. A valsa paralela entre a mão, que flutua sobre as fibras negras do parapeito, e a maré que rodopia ao longe, compõem a imagem, reflectida por um espelho que se encontra sobre a cómoda.
- Onde pairará ele, na imensidão grotesca deste monstro de sal e água? Que ventos o aconchegam nesse outro lugar que a calçada marinha torna inacessível? - Nicoletta recosta o rosto na mão que antes acariciava a madeira, circunspecta e melancólica.
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3
- O que é feito do senhor Kunz? - indagou um sujeito distinto, de meia-idade, num tom cordial e aprazido.
- Oh, meu caro amigo Ruskin, faz uma temporada que não lhe ponho a vista em cima. Mas o meu amigo está familiarizado com o espírito volúvel de Kunz, que quer que lhe diga? Eclipsou-se.
- Isso é um facto - aquiesceu Ruskin.
Acrescentando ainda, agora confrangido:
- Por outro lado, é da natureza de um caixeiro-viajante uma ausência circunstancial e periódica, não é verdade?
- Inevitavelmente, sim, é da sua natureza...- retorquiu laconicamente,
- Bom, retomarei então a minha higiene matinal, vou caminhar pelo parque.
- Grato pela sua presença, Ruskin, bons ares o animem nessa caminhada - despediu-se Morris, educadamente, todavia, sem timbre e quase maquinalmente.
- Até breve.
Morris ainda ensaiou um voto de deferência para com o seu cliente, silenciando-se de seguida face ao atraso do cumprimento. Era-lhe por demais agonizante o retinir da campainha, badalando agudamente a cada recém-chegado, ecoando-lhe fundo na alma, com a reminiscência subjacente ao badalo; fora Kunz quem o instalara faziam agora seis meses.
Kunz era um daqueles espíritos livres que tanto admirava. Adjacente a esta característica, Morris forçava-se a invocar o episódio que firmara a sua amizade, acreditando que a peripécia reunia todas as faculdades e talentos do companheiro, evocando a imagem de um indivíduo alvo, elegante, impecavelmente trajado, mesmo nas piores adversidades das suas economias flutuantes, possuidor de uma personalidade eloquente e contagiante; desistira de alumiar as cinzas extintas da esperança do seu regresso, regozijava-se por isso em recordações soltas, como a do primeiro e derradeiro encontro entre ambos:
Nessa época ainda não geria o estabelecimento alfarrabista, situado no respeitável nicho geográfico de Florença, berço de cultura e conhecimento; nem tão pouco se afirmara frondosamente como auspicioso comerciante de raça judaica, gesto descuidado quando proveniente de um principiante; eram tempos desenvoltos esses, tempos anteriores às rédeas estreitas que agora crivavam as linhagens e credenciais de raça; tempos, em que um jovem romeno com descendência israelita, aspirante a livreiro retalhista, caminhava desenvoltamente pelas ruas do Possível.
Fora numa dessas deambulações, que o acaso inesperado o levara ao encontro de Kunz. Morris caminhava apressadamente nessa manhã sépia de Outono, a camurça desbotada e rota dos seus sapatos, era infiltrada por uma mistela de folhagem fétida e água gélida, enregelando os seus pés nus. Empunhava numa das mãos, um documento de larga escala e de gramagem densa, próprio das credenciais de propriedade ou tutela, e, na outra, um pesado livro revestido de pó e declaradamente em decomposição. Morris, voltando o pescoço para consultar o distinto relógio da praça, embate violentamente contra uma anatomia ossuda e esquiva que, apesar disso se mantém inerte ao choque. O pesado livro cai aparatosamente, desmontando-se a capa do corpo de folhas que, esvoaçam pela calçada e se tingem de lama e sujidade. Morris, escachado no chão, exalta-se:
- Não vê por onde anda?! Já viu o que causou?
- Equivoca-se, meu caro, antes de mais a conjugação acertada seria causámos, já que ambos participámos do evento.
- Lamento se lhe causou maior prejuízo do que à minha pessoa, mas como pode concluir, é uma mera questão de swing - acrescentou Kunz, manifestamente divertido, em tom de gracejo, gesticulando avidamente.
Exasperado e levantando a custo a sua constituição rotunda, Morris brama:
- O quê?! Ainda se atreve a proferir graçolas, seu bexigoso! Acaba de destruir uma valiosa relíquia que me arrecadaria um bom negócio!
- Uma vez mais, uma questão de óptica, perspectivada por si. O dano que acaba de lamentar foi na verdade um feliz acaso - atalhou Kunz, ainda no seu tom coloquial e reluzente.
- Como disse? Um feliz...
- Acaso, sim, indubitavelmente! - atalhou Kunz.
- Em que medida, já agora? - inquiriu Morris, despeitado pelo malfadado diálogo contagiante do magricela metediço.
- A feliz circunstância que fez colidir as nossas pessoas, aconteceu porque o senhor mirava nervosamente o relógio, a fim de chegar a horas ao leilão que acaba de terminar no Augustus; adianto-lhe mais: a razão da sua inquietação, acaba de se desfazer no chão; Sim, falo da velha edição da Odisseia de Homero, que almejava vender a troco de algo que não lhe pertence...
Assoberbado, Morris questiona:
- Mas... como diabo sabe o senhor que pretendia comprar a emblemática adaga de Alexandre o Grande?
- Meu caro comparsa Morris, eu sei mais do que um magricela metediço deveria saber...-respondeu Kunz, vitoriosamente, boiando-lhe um sorriso vencedor nos lábios.
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continua
7 Setembro, 2008
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