Sábado, 29 de Março de 2008

Crisálidas da Cor-Guião

INT. ÁGUAS-FURTADAS, AMANHECER

O espaço é antigo e sombrio. Uma luz enferrujada, filtrada pela janela resguardada, derrama-se na confusão de livros na divisão estreita.
O dia começa a despontar inundando o lugar caótico de sombras.
Um metrónomo oscila regularmente.
Os ruídos dividem-se entre GOTEJAR DE CANALIZAÇÕES, ZUMBIR DE INSECTOS, RANGER DE SOALHO e METRÓNOMO NUM COMPASSO SISTEMÁTICO.
O METRÓNOMO RESSOA.
CHILREAR DOS PÁSSAROS
A luz espalha-se na cortina negra esburacada.
Uma aranha enrola uma presa.

INT. ÁGUAS-FURTADAS, AMANHECER

MILAN BAUMAN, meia idade, enfezado e raquítico, com o corpo coberto de chagas e cicatrizes, encontra-se acocorado próximo da janela, escrevinha anotações num caderno de camurça.
Pousado perto dos seus pés encontra-se o livro “O Conde de Monte Cristo”.
Os seus dedos afilados riscam o papel com uma caneta de feltro.
A cabeça pende-lhe sob o caderno.
A luz difusa confere-lhe um aspecto tenebroso.
RUÍDO ÁSPERO E RUGOSO DO PAPEL

MILAN BAUMAN (V.O.)

Cinco de Novembro...1995...penso eu...
Fita o nada. As mãos tremem-lhe. As rugas da testa cerram-se. O maxilar lateja.

MILAN BAUMAN (V.O.)(CONT’D)

O tempo, é uma morte que vive nos relógios.
Detém-se repuxando a pele da garganta. As narinas dilatam-se.

MILAN BAUMAN (V.O.) (CONT’D)

Para ti que te relerás um dia e recordarás o sabor do infortúnio e do desperdício que nunca evitaste...
Fecha o caderno.
SOM ABAFADO E SÊCO
Entrevê-se uma assinatura numa caligrafia irregular: MILAN BAUMAN.

INT. ÁGUAS-FURTADAS, FIM DA MANHÃ

A luz projectada no metrónomo altera-se com a passagem de uma sombra.
SILVO METÀLICO E FRENÈTICO
BATER DE ASAS FRENÉTICO
Penas ensanguentadas caem pelo chão.
Uma armadilha rudimentar aprisiona uma ave que se debate desesperada.
7 repetições
A sombra de MILAN BAUMAN em conjunto com o cadáver da ave, compõem uma sinistra imagem angelical na parede.
MILAN BAUMAN devora repulsivamente a ave.
Uma traça pousada no parapeito lustra as asas.
Desfaz rapidamente o animal, com expressões arreganhadas, espalhando as entranhas pelo corpo e pelo chão.
RUÍDO PORMENORIZADOS DE ENTRANHAS E VÍSCERAS A SEREM ESMAGADAS
SONS AGUDOS, ESTRIDENTES E REPUGNANTES
Um roedor mastiga nervosamente uma traça.

INT. ÁGUAS-FURTADAS, ENTARDECER

A luz ambiente mais branda e a tonalidade dos objectos apagados, adquire um tom azul sépia.

EXT. CIDADE, ENTARDECER

Cidade em ruínas. Confusões de destroços de betão e aço formam a paisagem árida. Prédios desmoronados envergam propaganda e vandalismo. O céu pardacento funde-se com a ebulição das fábricas. Poucas pessoas percorrem o pavimento irregular, demorando-se pouco.
Um fundo negro com um círculo no centro, revela a estrutura de um edifíco de habitações.

INT. ÁGUAS-FURTADAS, ENTARDECER

Com destreza, MILAN BAUMAN ajusta a focagem do monóculo incrustado com gestos seguros e sistemáticos.
Os dedos adquirem poses estranhas de ridicularidade e no seu rosto flutua uma expressão de pasmo fascinado.

EXT. CIDADE, ENTARDECER

Um homem incógnito fuma tranquilamente um cigarro numa varanda da fachado do edifício.
Chaminés expelem fumo sépia tingido pela atmosfera entardecida.

MILAN BAUMAN (V.O.)

(Voz áspera)
O homem é uma exalação fétida do mundo.
Dois lábios entrelaçam-se.
Uma mulher deixa escorrer um vestido pelas costas nuas.
No sopé da rua, crianças jogam ao aro.
No céu eléctrico, duas borboletas titiliam nupcialmente.

MILAN BAUMAN (V.O.) (CONT’D)

Que fome é esta que não se sacia?
MILAN BAUMAN estende o indicador pela fresta aberta tentando alcançar o bailado alado.
De rompante, retira-o bruscamente.
A pele empola-se rapidamente, adquirindo uma tonalidade negra efervescente. O seu olhar prende-se nesse quadro doloroso, despido de qualquer esgar de tristeza ou dor - apenas fascínio.

INT. ÁGUAS-FURTADAS, ANOITECER

Recortado na fresta do telhado, o luar em quarto crescente ilumina o céu negro.

EXT. FACHADA DO EDIFÍCIO DEFRONTE DAS ÁGUAS-FURTADAS, ANOITECER

Visão do monóculo.
No passeio da rua iluminada pelos candeerios, uma criança saltita segurando numa mão um balão e na outra o braço da mãe.
Segue a custo a passada da mãe, o monóculo segue o percurso das duas.
MILAN BAUMAN ajusta a focagem do monóculo, pairando-lhe um humor incerto nos lábios.
No horizonte, pequenas vagas de luz enfeitam a cidade.
A criança tropeça e liberta por descuido o balão que, flutua em direcção ao céu.
A visão do monóculo segue este movimento, detendo-se numa das janelas do edifício.

EXT. QUARTO DE MARY NA FACHADA DO EDIFÍCIO DEFRONTE DAS ÁGUAS-FURTADAS, ANOITECER

MARY, jovem, atraente, corpo delicado e pálido, cabelo de ébano resplandescente, com um vestido de musselina em tons jade, decotado na nuca, encontra-se sentada no seu quarto despovoado.
O qaurto está vazio, existindo apenas a cama onde MARY está sentada, e, uma cómoda com algumas molduras empoeiradas.
MARY segura uma fotografia desbotada emoldurada de um jovem atraente, distinto e esbelto.
Apoia a cabeça contra a mão, os cabelos negros cobrem a moldura.

INT. ÁGUAS-FURTADAS, ANOITECER

MILAN BAUMAN (V.O.)

Que estranha e rara beleza...pudesse eu possuir esta beleza, embalsamá-la num livro, debater-me por ela como Dantes por Mercedes...
Perfuma uma expressão de fascínio no rosto de MILAN BAUMAN.

MILAN BAUMAN (V.O.) (CONT’D)

Se eu pudesse...

EXT. QUARTO DE MARY NA FACHADA DO EDIFÍCIO DEFRONTE DAS ÁGUAS-FURTADAS, ANOITECER

A visão perde-se nos contornos do corpo de MARY, nos seus lábios pálidos, na curvatura do seu decote tímido, nas veias ruborizadas das suas mãos.

INT. ÁGUAS-FURTADAS, ANOITECER

MILAN BAUMAN medita, afastando-se do monóculo. A maçã de adão salta nervosamente. Esconde o rosto nas mãos cobertas de veias.

MILAN BAUMAN (V.O.)

Encontrar o semelhante no dessemelhante, contaram-me os romances sobre o amor...mas é um abismo...uma seda que me envolve podendo apenas esperar a sentença...eu amo..hm...e a palavra esvai-se...não posso...como não posso...

EXT. QUARTO DE MARY NA FACHADA DO EDIFÍCIO DEFRONTE DAS ÁGUAS-FURTADAS, ANOITECER

MARY levanta-se, em desespero.
A visão do monóculo segue-a.
MARY encosta-se às cortinas da janela do seu quarto. Fita o horizonte. Do seu olhar perdido escorre-lhe uma lágrima vagarosa.

INT. ÁGUAS-FURTADAS, ANOITECER

MILAN BAUMAN desespera. Arranca os pregos que unem a vedação da janela. Sangue espirra-lhe dos dedos.
Faz tombar o resguardo. Ensanguentado e exausto, cai sobre o parapeito, fitando MARY.

EXT. QUARTO DE MARY NA FACHADA DO EDIFÍCIO DEFRONTE DAS ÁGUAS-FURTADAS, ANOITECER

MARY mantém-se, taciturna, fixando o firmamento, alheia às incursões de MILAN BAUMAN.
EXT. FACHADA DO EDIFÍCIO DAS ÁGUAS-FURTADAS, AMANHECER
Branco.
MILAN BAUMAN jaz inaninado no peitoril da janela. Apresenta queimaduras. Os braços pendem-lhe em direcção ao chão, escoriados, sangrentos e com gotículas de orvalho.
A luz intensa banha-lhe o corpo. O véu de luz desvanesce as cicatrizes e o sangue.
SOM DE METRÓNOMO A ABRANDAR.
O metrónomo cessa.

publicado por sofisma às 00:38
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Segunda-feira, 17 de Março de 2008

Lost in Translation

Olhou com alguma indulgência e ataraxia os operários que exibiam os seus portes diminutos, na paisagem distante, enquanto cimentavam a copa do novo prédio que havia sido edificado, erradicando assim a ténue réstia de paisagem que aí resistia; o verde pereceu coroando o plúmbeo pardacento.

 

Semicerradamente, na curvatura das escarpas de aço e ferro, no desnivelamento dos edifícios, perscrutava uma fresta aberta, uma fenda onde refugiar o seu espírito volúvel.

 

O aperto sufocante que o seu pescoço exalava interiormente, o arrepio temeroso que lhe alisava o dorso, o medo, o terrível medo de um permanente estado nesta condição ansiosa e inquietante; como ele lhe fazia falta, e, como apenas nestas palavras conseguia exportar um “isto” miserável do enorme sentimento inefável que a submergia.

 

Camuflava-se nos afazeres, na tolerância ou negação ou mero entorpecimento da perda; mas era certamente uma questão de ocasião até voltar a ser acometida pelas mesmas visões turvas.

 

Esperava reticente, impacientemente dócil e cordial, que algo, sobremaneira inebriante, inefável, a arrebatasse, a deslocasse desta apatia afásica e entediante.

 

Aguardava horas fio, o recolher o astro apolíneo, ansiando encontrar nele as galáxias sépia musselina que vira outrora nos olhos dele.

 

Ensaiava discursos na primeira pessoa, devaneios por extenso, esdrúxulas confissões tenras, que debicava paulatinamente ao som melódico de uma harmonia triste.

 

As noites, trajavam o luto que se recusava a vestir, como pudor pela noção, novamente, de perda. Ninguém compreendia o que ela vira nele. O porquê daquela união inesperada. Só ela o podia explicar, fatidicamente e satiricamente: apenas a ela mesma.

 

O que era ele? Bem, Ele, Aquele, o Tal, o Homem, a pose, o gesto, eram-lhe insustentavelmente tudo. Tudo. Depositara nele idoneamente tudo o quanto tinha, arrendando e hipotecando sorrisos, de forma a tê-los em avultada quantia para lhos oferecer ubiquamente. Ele era o receptáculo, o oráculo dos seus sonhos, os moinhos colossais cervantianos contra os quais caminhava nesciamente. Ele, era o princípio e o fim de todas as coisas, o Darwin tamanho dos seus programas genéticos, o Mr.Hyde e Jekyll da sua fleuma imponderável, oh, como ele era…

 

Torceu o rosto, abcissando-o para trás; ali jazia ele, no leito dos seus sonhos inauditos; naquele néscio e angelical estado, encontrou ela previamente e com algum atempo: o nefasto germe da Tragédia.

publicado por sofisma às 23:53
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