"-Não, não me amas, não pode ser verdade! Quem ama
deseja a felicidade e repele a dor.
-Quem ama deseja apenas o amor, ainda que para tal
seja necessário experimentar a dor.
-Então fazes-me sofrer de propósito.
-Sim, para ter a certeza que me amas.
A filosofia do barão recusava-se porém a ir mais longe.
-A dor é um estado de alma negativo.
-O amor é tudo.
-A dor deve ser sempre combatida.
-Ao amor nada se recusa.
-Certas coisas nunca as admitirei.
-Tens de as admitir, inevitavelmente, uma vez que me amas e que sofres."
in "O Barão Trepador", CALVINO, Italo, Bárbara Palla e Carmo, Visão, 2000, Lisboa
Os dias somavam-se, indolentemente, o turbilhão calmo do vazio, dos clamores, da febre, das lágrimas, da desilusão, concentrava-se na solução diluída do espírito, sujeito ao intrespassável dique entre a memória e o quotidiano.
Suportando as horas como hordas ferinas procurando derrotar as muralhas da solidão, Röbi, enfrentava o pendão do tempo, mutilado, forçando-se a resistir, a estancar a gangrena de um tumulto emocional desmesuradamente insustentável; exilado na árida mansidão a que se votara, resguardara todos os pertences, todas as iconografias que infalivelmente actuariam como veículo para a imagem do passado que amordaçava; o quarto, menos exíguo, encontrava-se repleto de um vácuo ainda verde, não ainda arejado como um espaço por preencher, mas antes, mirrado como um fruto devorado pela voracidade da melancolia; todos os bens abandonados num recanto invisível da divisão, objectos maiores, irredutíveis, cobertos por panejamentos empoeirados, temíveis fantasmagorias que antes foram resplandecente mobília de mogno e faia.
A lassidão das suas meditações pousava descuidadamente nas gotículas de chuva, aderidas em desgoverno à vidraça do postigo. Divagantes corpúsculos vivos, animados pelo fustigar gravítico, jogavam-se diligentemente no abismo marmóreo do parapeito; tais dardos hidráulicos, invocavam no seu humor volúvel uma agonia latente, aeronautas temerários como ele um dia fora, ávidos aventureiros sem provisão de fôlego para um regresso à tona.
Desejava percorrer-se, fraccionar-se no cardume aquático da janela, banhar-se nessa purgação inverosímil até não mais restar reduto do seu passado que pudesse gotejar insubordinadamente. Exaurido como se encontrava, conhecia sobreaviso quão nefastos eram os desgostos que ousava deixar enlearem-se-lhe, sabia de antemão até, o desfecho de tais permissões: o total descontrolo do espírito.
Muito embora o refúgio da nostalgia e dos clichés passionais o amainassem, sabia, no âmago do seu ser, que consistiam unicamente em paliativos, ladainhas, estribilhos entoados para adormecer o fervor da perda, da ausência. Reportando-se ao núcleo efervescente e agitado da alma, que se revolvia como o mar indómito, amava sobretudo a serenidade com que ela sossegava essa fera irascível, não a domando, tão pouco domesticando-a, antes, seduzindo-a, como a esfinge hirsuta, rogada aos encantos da mestria feminina.
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