O metrónomo acorda.
Dez segundos morreram num sopro. A fita corre. A luz ilumina incandescente, as tiras contrastadas pelos sais de prata. Dez segundos. 25 Fotogramas elevados à potência de 10. 250 Vácuos. 250 Fotografias cada uma. Uma história. Uma vida.
Alguém disse que: “A fotografia é o inventário da mortalidade: mostra a vulnerabilidade dos vivos na sua própria destruição.”
Um momento, embalsamado na eternidade de uma sombra; a autenticidade da ausência, de tudo, da distracção que se perde nos olhares irrequietos.
Ouço o metrónomo preto no compasso da fita:
Preto e branco, preto e branco, preto e branco.
A beleza monocromática é uma faca de dois gumes. Tem o seu quê de ríspido e de misterioso.
Uma beleza pueril, concisa, sóbria, austera, solene, inequívoca e crua. Trespassando as linhas da cor, chegamos à análise por excelência, nada mais do que o sabor a facto, a garantia acontecida numa imagem plena de verdade.
O metrónomo suspira: preto e branco, preto e branco.
A busca desesperada sempre foi em prole da cor. A vontade, alastrou-se ao mais escondido fosso e à mais alta montanha. A cor, queremos cor.
Nada do que temos basta. Porque a vida respira cor. A vida exalta cor. As rosas são sangue de gema. E o amarelo das açucenas precisa de cor. Cor que o empalhe num registo de âmbar.
No negro queixume. No bafiento clima espesso dos sais de banhos de revelador. Nicéphore matutava numa forma de germinar o espectro cromático.
Os Daguerretipistas, mergulhando com afinco as suas mãos intoxicadas nos tanques, esperavam pintar o que era irregistavel- a cor.
“O Homem Sonha, A Obra Nasce...”
Em debandada, a cor lança o espartilho de novidade, e, em pesos atrozes, senta-se no pedestal da permanência.
Mas no firmamento convicto, o preto e branco em zunido de fundo, mantém-se, copioso e cioso.
Preto e branco, preto e branco.
Que fenómeno o fez viver? Porque ainda hoje, o preto e branco é recorrente?
Preto e branco, preto e branco.
Uma boa imagem, é além de uma captura, uma materialização de um símbolo, transforma um bom momento numa boa memória.
E será a ausência. A neutralização erradicada da cor. A abstenção conscienciosa de todo o acessório. Todo o apêndice cromático e extravagante, um realce de beleza?
A voz do tempo é grave e sisuda.
Antigas abordagens já haviam destacado como culto a faceta analítica da cor.
Escolas como a Bauhaus e os seus princípios puristas; teorias, como as de Gestalt, com o seu determinismo asseverado. Contradisseram as exaltações de volúpia do universo da cor, que tão idolatrada foi por Kant.
A incomparência da cor. A inexistente estética de um mundo que não dispõe de estética.
Ao despojarmo-nos da cor, distanciamo-nos da realidade, criando uma nossa.
A cor falha irremediavelmente na análise da matéria.
Sofreríamos imensamente mais com a crueza de um corpo jazido num terreno de batalha, a cor terrosa do sangue empastado na tela desviaria a atenção da cena, tropeçaríamos no domínio da emoção imediata, privados de uma interpretação intelectual.
O mundo a duas cores, é uma gruta sem sopro, mas, neste restrito espectro de realidade, a realidade soa a mais realística, por muito antitético que possa parecer.
Associamos a cor ao fugaz, à efemeridade repentina, de rajada, a cor, impressionista nas telas de Monet, plasticista nos contornos de Gauguin. A cor da celebridade, a cor da realização instantânea, que se desabrocha e morre no solstício. A ausência de cor é a ausência de tempo. Sobreviver como herói ao tempo, é prescindir da realidade inconstante.
Preto e branco, preto e branco.
Mas, sendo a cor predominante, qual o universo da falta dela?
A atmosfera duotónica foca-nos nos elementos construtivos, declara sem ensaios extravagantes ou ostensivos a sua intenção. A cor corrompe. A cor não é formal. O afastamento dela é ir ao encontro do que turva os olhos. A abstracção, como veículo de abstenção, abdica da matéria, fugir ao mundo cromático, é somente ver melhor. Soprar a maquilhagem da cor aplicada no cadáver do pensamento.
Preto e branco é História, é veracidade documental, dramatismo comedido, contenção, focalização aguçada.
Pensemos, como se trajam as orquestras? Preto e branco.
A que associamos os comerciais sensuais e requintados de moda e perfumaria? Preto e branco.
Que plástica esconde a “Anti-cor”?
Aprendemos, segundo Umberto eco, a ver sem cor, ou com ela, aprendemos a ver como símbolo, como artesãos de memórias.
Porque continuamos a preferir este meio redutor na imagética do nu e das plantas? Será que o ígneo da rosa feriria de tanto encarnado? Apreciamos melhor a beleza de uma tulipa, saturando à imagem de laboratório a sua imagem?
Inerente ao luxo, à subtileza do requintado gosto intelectual e elitista, encontram o preto e branco.
O metrónomo abranda docemente.
Cessou.
“A arte é uma mentira que nos faz perceber a verdade”
Picasso.
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